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A história de Veneza e como ela sobreviveu a pior epidemia de todos os tempos, a Peste Negra.

06/08/2017 / Por Admin / Categoria

Durante o século XIV, Veneza teve seu primeiro contato com a Peste Negra. Foram mais de vinte surtos até o final do século XVI. Aí sim, quando quase cinquenta mil pessoas foram vítimas de um novo surto. Entre surtos, mais de um terço dos habitantes da cidade faleceram com o fim dos surtos por volta de 1630.

A peste negra assombrou a Ásia e a Europa e transformou a realidade desse continente, causando mudanças sociais, econômicas e religiosas. Uma das pandemias mais mortíferas da história da humanidade, espalhada por ratos e pulgas, mas atribuída ao castigo divino. O impacto dela na história de Veneza foi tão grande que até hoje seu fim é celebrado por ali.

Veneza, os lazarettos e a quarentena.

Os efeitos que a peste causava no corpo a denominavam. O primeiro sintoma era a febre. Em pouco tempo, os gânglios começavam a inchar a ponto de ficarem grandes como uma maçã. Depois, manchas negras surgiam no corpo, nas pontas dos dedos e no lábios. Em até cinco dias do surgimento dos sintomas, a maioria dos infectados morria.

Veneza no século XV

Como a  República de Veneza era uma cidade comercial e um dos principais portos do mundo na época, a peste negra parecia nunca deixá-la a salvo. Por isso, os habitantes locais tiveram que ser criativos para tentar conter o risco da doença.

Foi em Veneza que surgiram os primeiros lazarettos do mundo. Os lazaretos, em português, eram hospitais isolados, ou hospitais-colônia, espaços para onde os doentes eram enviados. O Lazaretto Vecchio foi construído em 1403, numa ilha isolada. Muros altos, grandes quartos e camas que abrigavam três ou quatro doentes de cada vez. Se você fosse mandado para lá, tinha 90% de chances de morrer.

O Lazaretto Vecchio funcionou até 1630, não só para vítimas da peste, mas também como um leprosário. Acredita-se que a taxa de mortalidade chegava a 500 mortos por dia.

Também foi em Veneza que surgiu o conceito da quarentena. O termo vem do italiano quaranta giorni, ou, quarenta dias. Na epidemia do século 16, qualquer navio mercante que parasse em Veneza era inspecionado na ilha da quarentena. Se uma única pessoa fosse suspeita de estar doente, toda a tripulação ficava ali por 40 dias. Essa técnica mais tarde começou a ser adotada em diversas cidades portuárias e foi considerada uma das medidas mais eficientes para conter a peste.

Máscaras.

Máscara típica.

Além de isolar os doentes, havia também os chamados médicos da praga, que usavam as icônicas máscaras com o nariz longo. Esse modelo foi criado por um francês. A ideia era que elas purificassem o ar com ervas aromáticas e tentassem impedir que a infecção se espalhasse, o que claramente não condizia com a realidade da doença, mas sem querer os protegia das pulgas e do contato com fluídos contagiosos. Eles também acreditavam equivocadamente que poderiam curar as vítimas lavando-as com água salgada da laguna.

As festas pelo fim da peste em Veneza.

Em 1575, o Doge de Veneza prometeu construir uma grande igreja para glorificar Cristo, caso a epidemia passasse. Apesar do sistema de quarentena ter sido a razão do sucesso, era a religião que movia as pessoas. E assim, a pedra de fundação da Igreja do Redentor foi colocada na Ilha Giudecca.

A cúpula do Il Redentore ao fundo.

Festa del Redentore.

Il Redentore foi desenhada por um dos principais arquitetos italianos da época, Andrea Palladino. O fato da igreja ficar numa ilha tem o poder simbólico de um ritual religioso. É preciso cruzar a água, uma forma de purificação, para chegar até ali.

Essa virou uma das características de uma tradição que já dura mais de 440 anos. No terceiro sábado de julho, uma ponte de barcos temporária até a ilha é construída e inaugurada. Na noite de domingo, as pessoas da cidade se reúnem à beira da lagoa, comendo e bebendo, para assistir 25 mil fogos de artifício iluminarem a cidade. Uma comemoração, mesmo que muitos hoje não saibam, de que o tempo de escuridão e morte os deixou.

Festa della Madonna della Salute.

 Alguns anos mais tarde, em 1630, mais uma onda da peste tomou Veneza e, em um ano, mais um terço da população morreu. Outra vez, as pessoas acreditavam que era a religião que os salvaria: romarias e procissões se repetiam, mas a doença e as pulgas não paravam de se alastrar. Então, resolveram fazer a mesma promessa que havia dado certo 60 anos antes: o senado veneziano decretou a construção de uma nova igreja. O templo seria dedicado à Virgem Maria, considerada a protetora da república.

A Igreja para a Madonna della Salute foi construída no distrito de Dorsoduro, na Punta della Dogana, que fica bem entre o Grand Canal e o canal da Giudecca. A igreja Salute também é o centro de uma comemoração pelo fim da peste negra. A Festa della Madonna della Salute ocorre no dia 21 de novembro, com uma parada da praça de San Marco até a Salute. Nesse caso, também é construída uma ponte temporária para cruzar o Grand Canal.

A história da Peste Negra.

As estimativas variam, mas acredita-se que entre 75 a 200 milhões de pessoas morreram na Europa na primeira fase da pandemia que ocorreu durante a Idade Média, de 1347 a 1351. O assustador total de 25 milhões de pessoas já havia sucumbido na China, quinze anos antes da doença chegar nos portos europeus. Índia, Síria e Armênia também foram cobertas de mortos.

Causada pela bactéria Yersinia pestis, que é transmitida por pulgas e vive endemicamente em ratos e outros roedores, a peste negra surgiu primeiro na Ásia, graças a mudanças climáticas que fizeram com que os ratos pretos saíssem das planícies em direção a áreas populosas. Segundo epidemiologistas, alguns túmulos de 1338, no Quirguistão, com referências à peste, marcam o início da infecção.

As hordas do exército mongol de Gêngis Khan, que conquistou boa parte do território da Eurásia, da China à Ucrânia, contribuíram para espalhar a doença. Os mongóis teriam sido infectados na China e depois infectado os ratos nas planícies da região que dominaram. Daí, para chegar à Europa Ocidental há uma lenda.

Dizem que alguns mercadores de Gênova estavam em uma cidade portuária na região da Crimeia, hoje disputada entre Rússia e Ucrânia, quando a cidade foi cercada pelo exército mongol. Como uma tentativa de furar o cerco, os mongóis fizeram uso de uma arma biológica rudimentar: catapultaram para dentro dos muros da cidade corpos de mortos em decorrência da peste bubônica. Os mercadores de Gênova conseguiram fugir, mas levaram consigo a doença. Quando desembarcaram em Constantinopla e por várias cidades da Costa Mediterrânea, não sabiam que estavam espalhando terror para o resto do continente.

As caravanas da Rota da Seda, que conectava Europa, China e Oriente Médio, só contribuíam para que toda essa parte do mundo vivesse ondas de infecções. Mesmo quando cidades recusavam a entrada de navios, os ratos escapavam para a terra pelas cordas. Até hoje, existem roedores infectados vivendo nas planícies que um dia foram dominadas pelos mongóis. E isso também explica porque tantas vezes a peste voltava a causar grandes epidemias: um reservatório da infecção estava ali, na Ucrânia. Assim, a cada nova geração não imune que crescia, havia novamente um espaço de pessoas vulneráveis para propagar a infecção.

As epidemias de peste negra surgiram até o século 19, sendo as mais significativas na China e Índia. Até hoje, no entanto, ainda existem caso de infecção em regiões onde há roedores portadores da doença que, atualmente, é tratável com antibióticos.